sexta-feira, 17 de abril de 2009

Conto: O barqueiro

Hoje não era mais um dia qualquer, há muitos anos ele esperava por esta oportunidade, seu sonho se realizaria e se tudo desse certo encontraria novamente com seus parentes e amigos. Durante muitas horas esperara na margem do rio até que finalmente após brigar com meio mundo e provar que poderia embarcar, conseguiu subir a bordo.

O barco então seguiu calmamente pelo rio longo e tortuoso. Era possível ver as chamas altas queimando em uma das margens e as luzes azuis que pareciam subir aos céus na outra. A fúria das ondas teimava em fazer com que as águas sujas molhassem os dois passageiros e atrasava a viagem. O velho barqueiro, vestido em sua capa preta e com o capuz na cabeça, remava em pé e o olhava em silêncio.

— A muito espero por esta viagem, nem acredito que tenha conseguido chegar até aqui. Hoje é um dia muito especial. — Disse o passageiro, ansioso para chegar ao seu destino.

— Ainda não atravessamos o rio e muitas coisas podem acontecer no meio do caminho. Todavia, acredito que correrá tudo bem. Desde que você cumpra o prometido, é claro.

— Eu vivi uma vida impoluta, caridosa e de oração, fiz tudo o que podia e não podia para me tornar digno de estar ali. — Apontou o dedo para a margem iluminada. — Posso até ver meus parentes lá do outro lado, que sensação maravilhosa.

O barco continuou o seu caminho e a ansiedade aumentava a cada remada, a gritaria chegava aos ouvidos, pois as festividades da recepção já haviam começado.

— Agora, falta pouco. Pague-me por favor. Isto é o combinado. — Solicitou educadamente enquanto tentava controlar o barco que balançava muito devido as fortes ondas.

— É para já! — Disse ele retirando as duas moedas que tinha no bolso.
Neste momento por azar ou força do destino, a poucos metros da margem, uma onda maior sacudiu o barco e as moedas escorregaram de suas mãos e caíram no rio turbulento.

— Você tem outras moedas? — Perguntou o barqueiro.

— Ai meu Deus eram as minhas únicas duas. O que faço agora? Por favor me leve até a margem que eu arrumo outras com meus parentes.

— Sinto muito, regras são regras — respondeu furioso e virou o barco rumando para a outra margem.

Ele então ficou ali, sentado, perplexo, imóvel, escutando ao longe a lamúria daqueles que o esperavam. Toda a sua vida tinha sido em vão. Uma lágrima escorreu em sua face enquanto olhava as chamas do Inferno queimando a distância e o barqueiro Caronte o levava embora do Paraíso.

quinta-feira, 9 de abril de 2009

Conto: Sangue na Favela

Estava em casa fazendo nadinha e resolvi dar uma variada, por isso escrevi algo diferente. não vou colocar um ilustração aqui porque senão vai matar o suspense de quem ler.
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Mais uma vez o bar estava lotado, pelo menos umas trinta pessoas se espremiam entre as mesas, o balcão e a sinuca. O samba tocava alto e as mulatas sempre sorridentes e faceiras rebolavam ao pé das mesas. Do lado de fora um pequeno grupo com seis integrantes tocava seus instrumentos e cantava animado. Lá no Canadá não temos nada disso, pensei empolgado.

A Favela da Rocinha é um dos melhores pontos turísticos que já visitei. O povo está sempre de bom humor, prestativo e receptivo. Ela tem seus problemas, é claro, mas nada disso consegue tirar a minha vontade de revisitá-la, sempre que posso. Hoje vou me amarrar em uma morena e passar a noite inteira na farra, tomando caipirinha e transando como louco. Acho que só no Brasil mesmo para eu conseguir me divertir desse jeito. Até tomei o cuidado de escolher a roupa mais adequada, camisa e bermuda brancas. Só não comprei um chapéu branco porque iria desmanchar meu cabelo arrepiado. A barba mal feita, era algo que eu nunca iria mudar mesmo.

— Por favor, me empresta o fogo — perguntei ao carinha atrás do balcão. Tirei uma nota de dez dólares do meio de um bolo de cinqüenta e paguei — E me dê mais uma cerveja.

— Nós não aceitamos dólares aqui. Não temos como te devolver troco para isso.
— Por acaso eu pedi algum troco?
— obrigado então. Mais alguma coisa?
— Sim, me dê uma cachaça também.

Ascendi meu charuto e voltei para a mesa no canto onde estava sentado. A cerveja estupidamente gelada, branquinha do lado de fora, me dizia que talvez o retorno para o Canadá pudesse esperar mais uns dias. Contudo, eu só pensaria nisso amanhã.

A fumaça do charuto preencheu o lugar onde eu estava e as pessoas me olharam de um jeito meio atravessado, mas mesmo assim fiquei ali, esperando para ver o que poderia acontecer. Eu já havia percebido que um grupo de malandros me olhava, desde a hora que entrei no bar e notei que o barman estava falando com eles. Deve ter sido por causa do maço de notas de cinqüenta que eu mostrei a ele. A isca estava lançada.

— Você não gostaria de se sentar e conversar um pouco comigo, perguntei a bela morena que estava em pé ao lado da minha mesa.
— Isso depende, o que você tem para me oferecer? — ela perguntou com a voz mais suave e doce que eu já tinha ouvido.
— O mundo — respondi olhando em seus olhos — e nada, pensei.

Ela se sentou e pude sentir seu perfume barato e o cheiro de creme nos cabelos. Isso me excitou e uma sensação agressiva começou a tomar conta de mim. Pena que ela teria que esperar até mais tarde, pois ainda havia algo que eu precisava fazer. Não demoraria muito.

— Levante-se e saia bem devagar, finja que não gostou de algo que eu te disse.
— Por quê? O que eu fiz?
— Nada, mulher, apenas não quero que se machuque. Vá agora, depois nós conversamos. Pegue o meu cartão e me encontre no Copacabana Palace às onze horas.

Ela concordou e com um sorriso de molequa nos lábios se levantou e foi em direção a saída do bar. No caminho percebeu a movimentação que se formava. A maioria das pessoas já havia saído e o restante me observava. O barman continuava lá, sorrindo sarcasticamente. Este aí vai ter o que merece, pensei.

Não fiz nenhuma menção de me levantar, ao contrário, pedi que me servissem mais duas pingas, uma cerveja. O próprio barman me olhou torto e trouxe o que pedi.

— Aqui está senhor. Por acaso você é maluco? — Perguntou. Como não respondi, ele saiu.

Dez homens entraram no bar, uns armados com fuzis AK-47, outros com pistolas. O chefe do morro, um tal de Jorge Navalhada, se aproximou e se sentou na minha mesa. Ficou ali uns dois minutos me olhando sem dizer uma só palavra.

— Quem é você? — Ele perguntou.
— Tome uma pinga, ela está ótima. Tomei até a liberdade de pedir um copo para você.
— Você deve ser maluco mesmo, tem alguma idéia de que eu seja?
— É claro, vim aqui a sua procura. Tenho algo a te oferecer.

— Espero que seja rápido e muito bom porque se você sabe quem eu sou, já sabe também que sua vida está em risco e a minha navalha está ansiosa para te retalhar todinho. — Disse rindo e olhando para seus comparsas, que também estavam as gargalhadas.

— Vou lhe explicar, — disse grosseiramente — a algum tempo, desde que meu grupo foi desfeito, com o desaparecimento de nosso mentor, passei a cultivar o ódio dentro de mim, deixar aflorar esse lado selvagem que carrego. Me tornei, até certo ponto, um fora da lei. Cansei de ser bonzinho. Decidi que iria fazer as coisas do meu jeito. Sempre que posso viajo pelo mundo a procura de pessoas como você, que dominam tudo, e aviso que vou juntar ao seu grupo. Já fiz isso na África, Líbano, Ucrânia, Itália e em muitos outros lugares. Eu agora sou o que sempre fui, um assassino selvagem e impiedoso, a caça de quem tem mais poder.

Ele ficou ali, me ouvindo, com aquele ar de curioso. — Continue — disse o ele movimentando as mãos.

— Nunca tive dúvida de que adoro o Morro da Rocinha e o povo daqui. Por isso plantei a isca, com aquele pequeno maço de dólares. Até que você foi menos previsível do que eu imaginava. Demorou vinte minutos para descer. — Traguei novamente charuto e soprei a fumaça bem devagar olhando a reação do meu suposto anfitrião. Tomei a outra cachaça e perguntei — Está interessado?

— Deixe me ver, você vem aqui com essa arrogância toda, apenas para saber se eu quero te contratar? Que tipo de imbecil é você?

— Você é burro ou eu estou falando outra língua? — perguntei rispidamente. — Quando eu disse me juntar ao seu grupo, em nenhum momento pedi para ser contratado. A minha oferta é para você me entregar a chefia, descer do morro para sempre e continuar vivo. A partir de agora o Morro é meu e pronto! E aí? Topas?

O estampido do tiro pode ser ouvido à distância, e na rua as mulheres gritaram. A dor era algo que eu estava acostumado, afinal eu a sentia todos os dias em minhas mãos. Caí para trás deitado no chão, com uma bala de trinta e oito no peito. Em seguida senti o peso do desgraçado em cima de mim.

— Cara, você é doido! — Ele gritava e olhava em meus olhos. — Pegou a navalha e passou em meu rosto, na diagonal, cortando superficialmente de um lado ao outro. — Agora é a minha vez de falar, sem besteiras, tua vida acabou, só que antes eu vou te cortar todo antes dessa bala te matar.

Sorri para ele e fiquei esperando me recuperar.

— Eu te dei uma chance. Agora, já era, você está fudido. — Segurei suas mãos e me levantei, arranquei a navalha e joguei-a longe. Usei as minhas lâminas. A bala não estava mais em meu corpo e o corte já havia cicatrizado.

Os capangas ficaram ali imóveis, olhando assustados ao que se passava. As duas lâminas uma de cada lado do rosto de seu chefe só não os assustavam mais do que o sangue que escorria por entre meus dedos. Joguei o Navalhada no chão e saltei em direção aos bandidos. Um a um, eles caíram. Mal tiveram tempo de sacar suas armas. Minhas lâminas eram rápidas e furiosas, meus movimentos precisos por anos de treinamento e meu corpo indestrutível.

Nove dos dez capangas mais o barman morreram ali, em meio ao próprio sangue, retalhados em pedaços. Um deles eu decidi poupar para que transmitisse o meu recado.

Voltei-me então para o meu amigo Navalhada. Olhei em volta e vi que o bar estava destruído.
— Seu filho da puta arrogante e burro, eu te dei uma chance e você desperdiçou, olha só o que eu tive que fazer. Olha só a minha roupa nova, ela era branquinha e agora está furada e vermelha. — Meus olhos fervilhavam com a excitação pela briga e meu corpo tremia. Toda aquela violência me fazia lembrar de quem eu realmente era. Um animal. Olhei para os capangas e disse:

— Avise a minha morena que em meia hora estarei lá no hotel esperando por ela. E lembrem-se de quem manda aqui, agora! esse Morro é meu! Avisem a todos os outros chefes do tráfico que estarei chagando para ter uma conversinha particular com cada um. Espalhem que o monstro que não pode morrer está a caça, aqui no Rio de Janeiro. — Então sob seus olhares pasmos e aterrorizados, cortei o navalhada em pedaços.

— Quem é você? Perguntou um deles.
— Eu me chamo LOGAN, mas todos me conhecem por WOLVERINE. — Dei outro trago no charuto, recolhi as lâminas das minhas mãos e fui embora me divertir com aquela morena linda e sensual que eu havia conhecido à pouco.

sábado, 4 de abril de 2009

Conto: A velha cigana



Era um final de tarde como outro qualquer. A saída do trabalho como sempre movimentada, as pessoas se apertavam no elevador no intuito de chegar logo ao saguão e correr para os seus carros ou para o ponto de ônibus. Só para variar eu já estava de saco cheio, minha chefe havia me enchido o saco a tarde toda e minha mulher não parava de me ligar. Eu realmente estava com vontade de quebrar a cara de alguém, só precisava de um motivo.

No caminho também não ocorreu nada de diferente, pelo menos não até a chegada ao estacionamento. Eu caminhava tranqüilo e despreocupado em direção ao meu carro, rezando para não aparecer ninguém. Foi quando uma senhora e seu neto me abordaram.

Se ela soubesse o quanto eu detesto mendigos, talvez nunca tivesse vindo falar comigo. Só existia uma coisa que eu detestava mais. Ciganos. E ela era exatamente a personificação da minha repugnância, uma cigana, mendiga e suja.

— Por favor, senhor me dê um pouco da sua atenção — disse ela ao encostar a mão em meu braço. Aquele toque me deixou enjoado. — Eu e meu neto precisamos comer e não temos dinheiro. A dias estamos passando fome.

Sua voz era rouca, quase gutural. Aquilo me incomodou, mas não mais do que o toque de suas mãos imundas no meu terno novinho.

— Tire suas mãos sujas de cima de mim, nunca mais me toque. Outra coisa, eu não carrego dinheiro aqui comigo você está pensando o que? Que eu carrego trocados como você? Vá embora e me deixe em paz porque estou atrasado. — Neste momento parei para olhá-la enquanto conversávamos. Sua roupa, um vestido azul surrado, com um casaco de tricô marrom. As pernas de fora e os dedos dos pés, descalços, pareciam que iam cair de tão podres e machucados. Um sinal de que eles andaram muito para chegar ali onde estávamos. Aquilo me deixou mais enojado ainda. Senti pena do menino que estava junto dela, provavelmente um neto. Ele também era a sujeira em pessoa.

— Como é possível senhor? Você é bonito e rico, trabalha neste prédio pomposo e mesmo assim não tem nem dinheiro nem tempo para ajudar uma pobre velha como eu?

— Vá embora! Agora! — falei tentando manter a calma enquanto ela passava as mãos nos cabelos compridos e ensebados, presos em um gorro feito de pano velho.

As pessoas já haviam percebido que eu estava incomodado com aquilo, mas também nada fizeram. A indiferença só era vencida pela curiosidade. Continuei a caminhar e ela veio atrás de mim falando baixo, coisas que eu não entendia.

— Senhor?

O mau hálito vindo daquela boca com dentes cariados entrou pelas minhas narinas e isso foi à gota d’água. — Cacete sua cigana nojenta me deixe em paz! Eu não vou te dar porra nenhuma, nem um centavo sequer. Saia daqui — gritei. As pessoas olharam e começaram a se aproximar. Os seguranças também.

Não me contive e comecei a gritar com as pessoas em volta de mim. — O que é que vocês estão olhando? Vão se fuder! — O menino então parou na minha frente.

— Senhor, por favor, não diga mais nada, sua situação só vai piorar. Vóvó, vamos embora. — Disse ele, visivelmente amedrontado com tudo aquilo.

Não pensei duas vezes, empurrei-o e tentei passar. A multidão ficou enfurecida e começou a me xingar também. O menino caído no chão começou a chorar, por conta do cotovelo ralado. A velha parece que ficou louca e tentou me segurar pelo braço, o que me deixou mais furioso e me fez perder a cabeça de vez. Acabei empurrando ela também. A coitada bateu a cabeça no chão com tanta força que deu para ouvir o estalo da batida, apesar da confusão que se formava.

— Eu mandei você nunca mais me tocar! — em seguida cuspi em cima dela. Os seguranças do estacionamento então me agarraram e acabamos brigando no estacionamento. Enquanto isso as pessoas tentavam acudir a velha cigana, que estava sentada no chão sangrando um pouco na testa.
Quando os ânimos se acalmaram, os dois ainda estavam lá, só que o estado da velha senhora parecia bem diferente. Machucada e irritada me olhou, sua aparência transtornada. Seu rosto enrugado começou a tremer e eu me assustei quando ela gritou. Gritou a plenos pulmões, com aquela voz horrorosa.

— Você vai pagar por isso! — ela estava ficando descontrolada.

Eu já não sabia mais o que fazer, olhei em volta, parecia um circo de horrores, todas aquelas pessoas me olhando e xingando. Eu já estava para sacar todo o meu dinheiro quando reparei em seus olhos. Um deles estava completamente branco, virado para trás e o outro esbugalhado. Ela me olhava fixamente como se fosse me atacar. Porém o que aconteceu foi bem diferente.

A senhora se ajoelhou e quando achei que ela ia chorar, levantou os braços e começou a falar palavras desconexas. Em seguida me olhou profundamente, bem dentro de meus olhos, colocou o pulso direito na boca e o mordeu. A mordida foi tão forte que arrancou a carne. Ver aquele pedaço de carne em sua boca me deixou paralisado, nunca tinha visto nada tão brutal em minha vida. Os tendões balançavam no canto da boca e o sangue jorrava intensamente pela ferida.

Ela então mordeu o outro pulso e com a boca cheia de sangue levantou e se aproximou. Deu dois passos em minha direção, um rastro de sangue se formou no chão. Eu continuava paralisado, chocado com tudo aquilo, os segundos pareciam uma eternidade. Foi aí que senti o gosto imundo e podre em minha boca, a sensação do líquido quente escorrendo pelo meu rosto me tirou do transe. Ela havia cuspido aquela nojeira em minha boca e eu havia engolido parte dele. Ela então se ajoelhou de novo e se deitou no chão olhando para o céu. Imediatamente tirei a minha gravata e amarrei um dos seus pulsos. Rasguei minha camisa e amarrei o outro, enquanto as pessoas ligavam para o socorro médico. O menino chorava e gritava muito.

— Porque você fez isso? Eu te pedi para ir embora!
— Porque? — perguntei a velha senhora.

— Esta é a minha esmola para você! Você agora está condenado, a sua alma será minha e eu farei o que quiser com ela. — Em seguida, voltou a sussurrar palavras desconexas e desmaiou. O menino ainda chorava quando as sirenes da ambulância começaram a ser ouvidas.

Fui liberado pela polícia algumas horas depois e segui direto para o hospital. Eu gostaria de saber como ela estava, afinal eu não queria ser processado pela morte daquela desgraçada. As notícias não eram nada boas. Ela se encontrava em um estado de coma profundo, morta e viva ao mesmo tempo.

Segui para casa pensando no acontecido, na maluquice que aquela senhora havia feito e no choro do menino que parecia ecoar em meus ouvidos. Já era noite e eu ainda tinha um longo caminho até a minha casa. Quase nenhum carro circulava pelas ruas desertas. A noite era fria e uma névoa fina pairava na pista. Eu já estava muito cansado para raciocinar e só queria chegar em casa para poder tomar um banho quente e me deitar na cama.

Quando troquei o CD percebi, ao longe, alguém parado na beira da estrada. Quando me aproximei vi suas roupas puídas e o gorro velho. Era ela ali parada me olhando. Eu corria muito e mal consegui acreditar no que vi. Meu coração disparou e freei o carro. Os pneus cantaram e soltaram muita fumaça, mas quando olhei para trás a estrada já estava vazia.

Fiquei parado, pensando na peça que meus olhos haviam me pregado. Após alguns minutos com o coração acelerado, decidi ir embora e não pensar em mais nada do ocorrido, só que alguns quilômetros à frente, lá estava ela, parada na beira da estrada de novo. Quase freei outra vez, contudo decidi continuar dirigindo, só que desta vez com o rádio desligado.

Minha casa já estava perto e o meu sexto cigarro pela metade quando uma luz alta ofuscou minha visão. Fiquei cego por alguns décimos de segundo e quando o carro finalmente passou olhei no retrovisor para ver se reconhecia o motorista. Congelei! Ela estava lá, parada, me olhando pelo reflexo do espelho. Seu cheiro fétido empesteou o carro. Não pude fazer mais nada quando suas mãos tamparam meus olhos e minha boca. Só pude escutá-la sussurrando em meus ouvidos que eu iria morrer.

Abri os olhos lentamente e uma dor imensa percorreu todo o meu corpo. O pára-brisa quebrado me dizia que algo havia acontecido. Tentei me concentrar e apertei os olhos para enxergar melhor. Folhas e galhos estavam dentro do carro, fumaça branca saia do radiador e o cheiro de gasolina era forte. Só aí percebi que estava preso nas ferragens.

─ Caramba, que porcaria! Eu tenho que sair deste carro agora. ─ Não pensei duas vezes e tentei abrir a porta, mas ela estava presa. Soltei o cinto de segurança e me levantei para pular pela janela. A adrenalina corria solta em minhas veias e a dor pareceu diminuir. Eu precisava sair daquele carro o mais rápido possível, então pulei a janela e caí no chão. O cheiro da grama verde e molhada me confortou, enquanto o sangue escorria pela minha testa. Lembrei o gosto do sangue apodrecido da velha cigana.

─ Tudo bem, fique calmo, a ambulância já deve estar chegando. ─ falei para mim mesmo enquanto me arrastava para longe do carro e já ouvia ao longe as sirenes. Tudo escureceu novamente.
Acordei em meio aos gritos de dor na enfermaria de algum hospital, provavelmente o Hospital de Base, perto de onde eu estava. Lotado como sempre e com poucos médicos, o pronto socorro era o caos, o inferno na terra. Não sei quanto tempo fiquei por ali, mas algo estava estranho, aquela maca sem colchão e as roupas brancas e sujas de sangue não condiziam com o tratamento que qualquer pessoa mereceria ter. Tentei me levantar, mas não consegui. O frasco de soro já havia secado e o sangue subia pela mangueira, indicando que algo não estava bem.

─ Puta merda, eu devo estar num dia daqueles! Devo estar pagando por todos os meus pecados. Enfermeira! ─ Chamei por duas vezes e ninguém veio me atender. Fiquei ali pensando em como fazer para sair e ir embora para casa quando a cortina atrás de minha baia foi retirada e uma maca vazia colocada ao meu lado.

─ Por favor onde está o médico ou a enfermeira? ─ perguntei ao servente que trouxe a maca.

─ Já vou chamá-lo, espere um minuto.

Adormeci novamente sem o auxílio de ninguém. Provavelmente os sedativos eram fortes demais. Mais tarde, a dor em minhas pernas havia voltado e acordei assustado, pensando que estava no meio de um pesadelo. Quando abri os olhos não consegui segurar o grito de horror, a cigana estava deitada na maca ao meu lado, me olhando fixamente, sem expressão. Apenas me olhando. Urinei nas calças de tanto susto e gritei, gritei muito. Só então os médicos chegaram para me ajudar.

Fui segurado e injetado com algum tipo de calmante. Ninguém da minha família havia sido avisado, pois eu continuava sozinho no meio daquele inferno.

─ Fique calmo, eu sou o Dr. Jorge. Você sofreu um acidente e bateu com a cabeça.

─ Obrigado doutor. ─ Respondi enquanto tentava me controlar. ─ O que ela está fazendo aqui? É por causa dela que estou aqui. Me tire daqui agora! ─ gritei descontrolado de novo.

─ Sinto muito, mas não temos outro lugar para te colocar. Fique tranqüilo que ela está em coma.

─ Ela estava me olhando doutor.

─ Foi impressão sua ─ Disse ele enquanto me isolava puxando com as cortinas de plástico. ─ Fique calmo, seus exames já devem estar prontos e se tudo estiver bem você vai para casa ainda hoje. Somente agora conseguimos entrar em contato com sua esposa. Ela já está a caminho. Posso te deixar aqui? Sozinho? Você já está desamarrado e medicado.

─ Tudo bem. ─ respondi ainda sobressaltado. Me deitei de novo na maca, fechei os olhos e escutei o médico deixando o ambiente.

Eu devo realmente estar ficando louco, não pode existir tanta coincidência assim, essa louca aqui do meu lado só pode ser um pesadelo. Talvez se eu ficar de olhos fechados nada me aconteça. Foi aí que ouvi uma voz me chamando, uma criança.

─ Sr? Pode me ouvir? Porque você não me escutou, agora você terá que pagar o preço, sua alma está perdida, assim como a minha.

Levantei da cama num pulo só e olhei assustado para o garoto. O neto da velha cigana, ali, em pé ao lado da minha maca. Eu estava sentado no fundo da maca, com as pernas encolhidas, aterrorizado com aquela visão. Seus olhos estavam perdidos e sua expressão triste.

─ Nós só te pedimos uma esmola, só isso. Mas você não podia dar não é mesmo? Pense nisso quando pagar o preço. ─ Em seguida saiu correndo.

Não pensei duas vezes, me levantei e saí correndo sem saber para onde ir. As pessoas assustadas me olharam correndo, mas nada podiam fazer. Os seguranças do hospital atendendo outros pacientes nem me viram passar. Os corredores pareciam infinitos e as macas espalhadas também. Eu não tinha a menor idéia de onde ir, só queria fugir dali o mais rápido possível. Desci as escadas de incêndio, enquanto ouvia em minha mente o gargalhar da cigana. As luzes foram diminuindo, talvez pela chuva, talvez por outro motivo qualquer. De repente tudo ficou escuro.

Gritei de medo, ali, preso nas escadas e sozinho, o cheiro de podre da velha mais uma vez tomou minhas narinas e eu me desesperei. Tentei descer as escadas e caí, rolando os degraus. As luzes de emergência se acenderam e me deram um alento. Eu ainda estava sozinho, ela não estava lá.

Abri a porta da saída de emergência e entrei num andar que mais parecia um depósito. Tudo lá estava jogado, o cheiro de mofo e de lençóis contaminados era incrível. As máquinas de lavar faziam muito barulho, ninguém poderia me escutar. Eu estava entrando em pânico quando vi a velha ali parada olhando para mim. As luzes se apagaram outra vez, senti uma mão tocar de leve o meu rosto. Eu já não sabia mais o que pensar ou fazer, decidi correr, fugir, mas tudo estava escuro. Corri assim mesmo, eu me lembrava de pelo menos uma passagem no meio dos latões e por lá tentei passar. Não dei nem cinco passos e senti o chão sumir de meus pés, era como se ele não estivesse mais ali. Caí, num buraco, num poço e me afundei naquela água fétida.

As luzes de emergência se acenderam mais uma vez e me vi num túnel dos esgotos, completamente coberto por aquela sujeira fedorenta e sem saber o que fazer, dezenas de ratos se juntaram perto de mim, observando, olhando em meus olhos.

─ Meus Deus, e agora? Por favor me proteja, proteja a minha alma. ─ Antes que eu pudesse falar mais alguma coisa duas mãos saíram do esgoto negro, me agarram e eu fui puxado para baixo. Sufoquei e me debati. Nessa hora, em meio ao desespero abri os olhos e vi meu corpo, lá embaixo, se debatendo. Parecia que minha alma não estava mais lá e sim flutuando. Será que eu estava morto?

─ Não, você não está morto. ─ disse a cigana. ─ Eu disse que sua alma seria minha e é isso que está acontecendo. Estou tomando posse dela e vou te castigar de uma forma que você vai se lembrar pelos próximos anos. Farei com ela algo que você nunca se esquecerá, algo que te lembre da sua mesquinharia.

Tudo escureceu novamente.

Quando recobrei a consciência tudo estava diferente, aquele cheiro podre estava em mim, não enxergava direito e meu corpo doía. Me sentei na cama com muita dificuldade pois meu corpo parecia não ajudar e notei que minhas roupas haviam sido trocadas por outras velhas e estragas, achei que alguém havia me pregado uma peça. Aquilo só poderia ser um pesadelo.

─ Socorro ─ Chamei alguém, mas não reconheci a minha voz e outra vez o menino abriu as cortinas. Minha idéia de pesadelo havia ido por água abaixo. Era tudo real.

─ Eu te disse, não disse?

─ O que houve? ─ perguntei

─ Ela pegou a sua alma, seu castigo assim como o meu será muito pior que você pensa. ─ Em seguida me deu um espelho.

Olhei nele e fiquei pasmo, em choque, sem saber o que fazer, a imagem refletida era a da velha cigana. Olhei então as minhas mãos e pés e percebi o ocorrido. O menino abriu o resto da cortina e sorriu. Eu estava lá em pé bem na minha frente. O meu castigo não poderia ter sido pior, até a morte seria melhor do que isso, vagar pelos próximos anos, sozinho, pobre, neste corpo velho e imundo. Este era o meu maior pesadelo.

Então, sem poder fazer nada, fiquei lá, estático, me olhando, até meu corpo ir embora, sem minha alma, de mãos dadas com o menino, tomado pelo espírito demoníaco da velha cigana.
Quem sabe uma hora dessas eu não aprenda esse truque, trocar de corpos, quem sabe um dia alguém também vai me negar esmolas e eu voltarei a ser quem eu era, pensei nisso e minha dor não melhorou, meu coração continuava apertado e fiz a única coisa que me restava. Chorei.