segunda-feira, 12 de janeiro de 2009

O diário do padre Matias




DIÁRIO DO PADRE MATIAS -





Página 25

(...) Escreverei aqui um pouco de minha história porque sei que nunca chegarei ao Brasil. Acredito que com esse tempo lá fora, essa chuva, nossa caravela deverá afundar muito antes de completar a viagem. Pouco importa o que vou escrever. Muitas das coisas que contarei aqui nunca deverão ser lidas por ninguém. Foi um juramento de silêncio que fiz já as vidas de meus companheiros dependem disso.

Desde criança eu sinto estes impulsos violentos e posso ver hoje, como num piscar de olhos, a primeira vez que eu vi sangue de verdade, sangue de gente. Naquele dia eu estava com oito anos e era inverno.

O entorno da cidade de Lisboa se encontrava completamente encoberto por uma neve espessa que havia caído na noite anterior. As árvores nuas e com os galhos expostos transformaram a paisagem, antes verde e florida, em um cenário mórbido e sombrio, quase igual ao cemitério da cidade. Poucos animais se arriscavam a sair naquele frio, e somente à noite, protegidos pela escuridão davam o ar de sua graça. Nesta hora era possível escutar ao longe o piado das corujas e o uivar dos coiotes.

Naquele dia nós saímos para caçar javalis, armados apenas com uma garrucha e uma faca. Faríamos uma caçada onde o silêncio, a tocaia e um bom esconderijo em cima de uma árvore, eram a diferença entre o sucesso e o fracasso. Eu, meu pai e mais dois de seus amigos andamos por mais de três horas pela mata fechada até acharmos um local ideal para montarmos a tocaia. Como esta era a minha primeira caçada, eu ainda não sabia direito o que fazer. Já estava difícil demais carregar a arma, o casaco e um pouco de comida e água.

Um frio de doer os ossos e o vento de rachar os lábios soprava cada vez mais forte. O barulho do vento parecia uma alma penada assobiando em meus ouvidos e a cada minuto que eu passava em cima daquela árvore aumentava o meu sofrimento e a minha angústia. A minha vontade era de gritar, mas eu sabia que o menor barulho poderia espantar a nossa caça e adiar ainda mais o retorno para casa. Caçar definitivamente não era o meu esporte predileto.

Ficamos espalhados em uma área de uns vinte metros, cada um em uma árvore diferente, esperando por algo passar embaixo da gente. O vento continuava a soprar e soprou tanto que por muitas vezes eu tremi a ponto de quase cair lá de cima. Chegou uma hora que meus sentidos já estavam meio entorpecidos e minha mente começou a vagar por outros lugares mais aconchegantes e aquecidos. Eu já sabia que de nenhuma forma sairíamos dali antes do amanhecer, portanto a única coisa que poderia fazer era pensar em outra coisa e esperar o tempo passar.

Foi nesta hora, quando já havia desistido de tudo, que comecei a entender o real motivo de todos estarem ali. Entrei numa espécie de transe, o frio já não mais incomodava meus ouvidos e o cheiro da mata já não era o mais forte. Aquela sensação me deixou com os pelos da nuca eriçados e um arrepio cortante subiu pela minha espinha. Eu podia sentir o que se passava em minha volta, escutava os estalidos dos galhos pisados logo à frente de meu esconderijo e a sentir o cheiro acre e meio enjoativo, do animal, que era trazido vindo pelo ar.

Aquela sensação envolveu a minha alma, tomou meus pensamentos e fez com que eu me sentisse o maior de todos os caçadores. Foi nessa hora que tremendo e soltando fumaça pela boca, que vi um javali de mais ou menos uns oitenta quilos, o bicho era grande demais e meu coração quase pulou pela boca. Ele estava um pouco à frente da árvore do Juarez, e penso que o retardado estava dormindo, pois nenhum tiro foi disparado. Na verdade eu acho que todos estavam dormindo, menos eu que estava quase tendo uma crise de hipotermia.

Não deu outra, engatilhei a minha arma, muito devagar, trazendo o gatilho para trás, e mirei. Estava difícil de enxergar, apesar da lua estar cheia e a pino lá no céu. As sombras geradas pelos galhos das copas das árvores traiam a minha visão e diminuíam a minha confiança, assim como a neve fina que caia. Para piorar, a minha mira voltou a tremer. O bicho se aproximou e já estava numa posição perfeita para o meu tiro certeiro,. Parecia que a adrenalina tomara conta de todo o meu corpo. A tremedeira e a excitação eram tamanhas que eu já não sentia mais as pontas de meus dedos.
Foi nessa hora, onde existe uma comunhão entre a vítima e seu algoz, que eu consegui ver o brilho da lua no olho do bicho. Neste momento eu percebi que a vida daquele animal estava em minhas mãos e quase que instantaneamente um calor passou por minhas veias, percorreu todo o meu corpo e então, neste exato momento, eu decidi, mirei e atirei.

Não vi mais nada depois disso. Pelo menos não por um pequeno espaço de tempo. Acordei com me pai em cima de mim, abraçado e enrolado num cobertor tentando me aquecer. Só depois eu entendi que no auge de minha excitação eu havia deixado meu cobertor cair e com isso acabei desmaiando por causa do frio intenso, esse fora o real motivo da minha tremedeira. Ao mesmo tempo, eu também podia ouvir os gritos estridentes de Juarez.

Demorei um pouco para entender que o meu tiro não matou o javali e sim acertou o coitado do Juarez na barriga. Provavelmente eu havia desmaiado ao mesmo instante que apertara o gatilho.
Neste momento uma sensação diferente tomou conta de mim, me entorpeceu e à medida que os gritos invadiam os meus tímpanos, que aquele sofrimento permeava a minha alma, uma sensação de êxtase nunca antes experimentada se apoderou de mim.

Eu então levantei, empurrei meu pai para longe e fui observar a cagada que havia feito. O coitado do Juarez estava no chão com um rasgo na barriga, a bala havia entrado e saído no sentido lateral ao invés de ter atravessado de um lado ao outro. Parecia que o coitado havia sido estripado com uma faca.

Nessa hora eu pensei que aquelas coisas enroladas deveriam ser os famosos intestinos que meu pai tanto falava e o sangue jorrando para a direita, marcando a neve branca, parecia uma daquelas pinturas macabras que eu havia visto na casa de minha avó.

Naquele momento, tão sublime, entre um grito e outro, eu pude perceber que algo havia mudado em mim e que a partir daquele instante eu era uma nova pessoa. Era como se uma chave houvesse sido girada e sensações e pensamentos novos surgissem a cada segundo. Qualquer católico se me visse, naquele instante, iria pensar que o Diabo soprou algo em meu ouvido e contaminou a minha inocência.

Eu só pensava em observar em detalhes o sofrimento do coitado, que estava a pelo menos três horas de caminhada da cidade e a uma temperatura de gelar a alma. Neste instante percebi que poderia dominar a vida das pessoas, poderia controlar a vida e a morte, e que o futuro de alguém poderia simplesmente estar em minhas mãos.

Acredito que se e tivesse mais idade eu teria tido um orgasmo naquele momento. Mas aos oito anos eu só poderia mandar todos me largarem e ir assistir o Juarez se agonizar em gritos e sofrimento. Nesta hora, mesmo eu achando que todos estavam cuidando dele, eu me aproximei e fiquei olhando em seus olhos para ver o que aconteceria. Eu esperava descobrir o exato momento entre a vida e a morte, aquele onde a pessoa se desengana por total e desiste de tudo, um mísero milionésimo de segundo que poderia acontecer a qualquer hora e ficaria marcado em minha memória para sempre. É claro que quando esse momento ocorreu, por dentro, eu enlouqueci, mas por fora deixei apenas transparecer um pequeno sorriso e um suspiro de prazer. Suspiro quase imperceptível. Quase!
Seu Jaque de Lire, um dos amigos de meu pai, caçador experiente e católico fervoroso percebeu na hora o que se passava e por incrível que pareça eu também. Quando nossos olhares se cruzaram eu percebi que havia arrumado um inimigo para a vida toda, um inimigo de vida e de morte. Nessa hora meus olhos brilharam e eu senti outro calafrio correr por todo o meu corpo. Um calafrio bom, daqueles que fazem a gente gemer de felicidade. Mas a minha história com Jaque de Lire eu contarei mais adiante.

Alguns anos depois, nos mudamos para uma fazenda no interior. A morte de Juarez havia mexido muito com meus pais e também com parte de nossa comunidade. Vivíamos todos como se fossemos uma grande família, éramos todos conhecidos naquele local e aquela morte tão violenta e imbecil acabou por marcar para sempre a nossa família. Fomos expulsos de nossa casa e por conta das palavras de ódio proferidas por Jaque, eu fiquei jurado de morte. Foi nesta hora que meus pais resolveram fugir.

De início pensamos em nos mudar para outro país, mas com o tempo decidimos nos estabelecer na pequena cidade de Palmos, nos arredores de Lisboa. Um erro que seria cobrado a ferro e fogo no futuro. A vila era tão pequena que qualquer suspiro poderia ser ouvido a um bairro de distância e se dependesse das fofoqueiras da cidade chegaria muito mais longe. E foi exatamente o que ocorreu, não foi como a velocidade do pensamento mas foi com certeza um pouco mais devagar que esta narrativa.

Tudo começou quando fiz dezenove anos. Há muito eu lutava contra os meus pensamentos e minhas vontades. Às vezes eu chegava a explodir e era nesse momento que saia de casa e sumia por alguns dias. Meus pais ficavam loucos, mas naquela época controlar os filhos era algo quase impossível. Na mesma ocasião surgiram três corpos mutilados nos arredores da cidade e a polícia não sabia nem como dar início a uma investigação daquele porte. As notícias corriam como se fossem pombos correios voando a velocidade máxima do vento, e foi nessa hora que vi o então recém nomeado padre, Jaque de Lire, chegando à cidade.

Meu coração gelou e minhas veias pareciam que iriam explodir em minhas têmporas. A sensação de criança havia voltado a meu corpo e minha mente fervilhou de idéias. Foi neste momento que eu descobri de uma vez por todas que nossas contas deveriam ser ajustadas, senão minha vida poderia se tornar um inferno. Mas como um garoto de dezessete anos poderia criar uma armadilha para um ex-policial experiente e sagaz que percebeu num piscar de olhos a minha índole, nove anos atrás?
Desde aquele momento floresta, Jaque vinha me observando de tal forma que sufocou minha família. Na verdade ele foi o pivô de toda a discórdia e na minha cabeça a sua hora havia chegado.
Jaque, quando me viu, após vários anos de distanciamento, na mesma hora me reconheceu.
Ele se aproximou, imponente em cima de seu cavalo branco e me disse: Estes olhos eu não esquecerei jamais! Vou te pegar moleque e quando isso acontecer você sofrerá mais que todas as pessoas que você já matou. Eu não tenho dúvida nenhuma que a morte destas pessoas tem ligação contigo.

Na verdade elas tinham mesmo, foi eu quem perseguiu e sodomizou cada uma daquelas pessoas mortas. Fiz delas um ateliê de minhas vontades, um algo inimaginável. Entendi que nada poderia me transformar em algo diferente do que sou. Eu sou um assassino e se existe um capeta de verdade ele sempre soprará algo em meus ouvidos confirmando a minha aptidão. Caso não exista, apenas servirá para provar que a vida serve para ser vivida ao extremo. E no extremo eu estou.

O desgraçado do Jaque havia se tornado padre a mais ou menos um ano, logo depois de desvendar os crimes do canal, em Lisboa. Naquela época eu acho que algo fez com que ele perdesse de vez a crença na capacidade dos homens se recuperarem e acabou se voltando para a religião como se fosse a sua última saída daquele mundo cão. Eu particularmente acredito que o safado nunca me esqueceu e que o seu egresso na inquisição foi decorrente na sua obsessão por mim.

Passei quase uma semana pensando no que fazer a respeito da sua presença e como eu poderia me livrar de sua influência de uma vez por todas. Mas nada disso adiantou porque no oitavo dia de sua chegada ele descobriu onde eu morava e invadiu a minha casa prendendo toda a minha família de uma vez só. Acho até que ele demorou tanto porque estava arquitetando seu plano maléfico. Sua vingança.

Não satisfeito em ter-me nas mãos ele usou de todo o seu poder, investido pela igreja, para tentar me ludibriar a confessar os meus crimes. Mas eu sabia que isso nunca aconteceria e também sabia que sofreria o “pão que o diabo amassou” nas mãos daquele canalha. Só nunca imaginei que ele torturaria a minha família para tentar atingir o seu objetivo. Até ali, eu ainda poderia viver com isso, mas quando a tortura começou a ser realizada bem na minha frente às coisas mudaram de figura. Eu nunca me esquecerei de minha irmã sendo queimada viva com ferros quentes e nem dos seus gritos quando a fogueira foi acessa. O cheiro da carne queimada invadiu minhas narinas de tal forma que eu quase entreguei os pontos.

O único problema é que minha família acreditava piamente na minha inocência, e eu nunca os deixaria morrer sabendo da verdade, até porque todos nós morreríamos de qualquer jeito nas mãos daquele inquisidor. Certos ou errados o nosso destino já estava traçado. E a dor estava escrita em cada linha daquele plano selvagem, escrito por Jaque.

A morte de minha irmã foi derradeira para que eu entendesse o sofrimento das famílias de minhas vítimas e mais ainda, para eu ter a real noção de meus sentimentos. E nessa hora percebi que a dor da perda e nada significavam a mesma coisa no meu coração gelado. Somente o sentimento de vingança, misturado ao desafio de matar um inquisidor e temperado com as nuances da tortura é que aplacaria a minha ira.

Nesse dia eu descobri que não tinha valores e nem sentimentos, minha alma era vazia e meu coração de pedra. Foi então que decidi que o meu mundo era diferente e que minha vida seria pautada apenas naquilo que me desse vontade. Desse momento em diante, o meu único objetivo era o de sobreviver ao Padre Jaque de Lire e de sobreviver àquela Igreja inquisidora.

O mais estranho é que este fato se passou como que num piscar de olhos, eu simplesmente senti tudo isso e pronto. No outro segundo já havia me transformado e então um sorriso maroto apareceu em minha face. O que mais eu poderia fazer? Nada! Pensei e me resignei.
As mortes de minha mãe, pai e irmãos significaram apenas o começo de tudo e a partir dali eu viveria cada segundo, de forma a curtir tudo aquilo que eu apreciava antes de minha prisão. A morte, a dor e principalmente o domínio sobre a vida dos outros.
Nós quatro fomos aprisionados numa cela de pedra, escura e mofada, nos subterrâneos do castelo do senhor Mariano, um senhor feudal implacável que levava o seu rebanho em rédeas curtas e aterrorizava as virgens de sua pequena cidade. Ele havia emprestado seu castelo à Igreja para a realização de seus rituais inquisidores. Emprestado talvez não fosse o que realmente ocorreu, pois caso se negasse a fazê-lo quem poderia parar na mesa de tortura seria o próprio Mariano, mas, fora isso, algumas trocas financeiras e favores devem ter sido combinados na ocasião, para que nada vazasse dali, nenhum comentário sobre o ocorrido sairia daquelas paredes.

Estávamos presos a grilhões de ferro e correntes fincadas no teto da cela. Parecia que após algumas horas, as bordas começavam a cortar a carne de nossos pulsos e os ombros a se deslocarem. Pelo menos eu não estava de cabeça para baixo. Meu irmão mais novo, Rodolfo, não agüentou de tanto chorar e desfaleceu por alguns minutos. Nesta hora nós rezamos para que ele houvesse morrido e escapasse do sofrimento que estava por vir. Minha mãe teve um ataque cardíaco logo nas primeiras chicotadas e sua dor foi aliviada rapidamente, junto com os gritos de “aleluia Senhor” profanados pelos padres inquisidores.

Eu fiquei ali sem poder fazer nada e olhando em volta, cultivando a minha dor e a minha raiva, tentando entender o porquê as salas de tortura eram daquele jeito. A única coisa que me ocorreu foi que as pequenas janelas da cela davam um último fio de esperança aos moribundos, como se sentir o calor de um pequeno raio de sol ou o cheiro da chuva na grama molhada mostrasse a existência de Deus e um mundo melhor na outra vida. Todo o resto ficava ali, acabando com o pouco da sanidade que sobrava.

As baratas e ratos comungavam com os presos e dividiam restos de comida e fezes espalhadas no chão. Durante o verão o calor deveria ser insuportável, pois não havia circulação de ar, e no inverno o contrário. Mas nada disso importava porque ninguém que entrasse ali duraria mais que uma estação.

No outro dia após a morte de minha mãe eu fui levado a uma sala de interrogatório e torturado por mais ou menos trinta minutos. Ainda me lembro do som de minhas unhas sendo arrancadas. Jaque queria a minha confissão para validar o seu trabalho e poder se deliciar com a fogueira, só que isso eu nunca daria a ele. Dois dias depois cortaram as mãos de meu irmão bem na minha frente, com um serrote, e eu o vi sangrar até a morte. Percebi também que todos se refestelavam com a situação, a lavagem cerebral foi tamanha que um desgraçado daqueles poderia chegar vibrar torturando os coitados ali presentes. Nessa hora imaginei como seriam as suas vidas fora dali. Não cheguei a nenhuma conclusão.

Nenhum dos inquisidores conseguiu acreditar na minha impassividade face à morte de meus familiares. Isso só os deixou mais crentes no fato de que eu era realmente amaldiçoado e merecia queimar na fogueira. No mesmo dia que meu pai morreu a situação toda mudou. Mudou de uma forma que poderia ser dita como um milagre. Um milagre dos céus, ou seria das trevas?

Eu já estava ali a duas semanas numa cela pútrida, pois nossos excrementos nunca fora retirados, bebendo uma água tão suja que parecia vinda dos esgotos. Para comer eu recebia um pão duro e velho cheio de bolor e uma sopa que acredito haver sido feita com comida estragada. Se não fossem os ratos e as baratas, eu nunca teria sobrevivido. O verão estava no seu auge e lá fora tanto a temperatura quanto a umidade estavam muito altas e aqui na cela eu suava como um porco. O calor era sufocante. Ficar acorrentado nessa situação deixaria qualquer um louco e comigo não foi diferente. Só que eu era não era como as outras pessoas, eu possuía um poder de concentração incrível, o que me fez agüentar todas aquelas privações. As seções de tortura eram o meu maior problema, já que quanto à dor não se podia fazer muita coisa mesmo.

Nesse dia Jaque entrou em minha cela e disse: é hoje que eu te torço todo. Eu na mais pura inocência achei que ele falava sobre a minha confissão, mas me enganei completamente. Fui levado a uma sala onde se encontrava uma máquina novinha, recém chegada do Vaticano. Só de olhar para a maldita meu sangue gelou e percebi que sofreria muito ali. Encarei Jaque e disse: hoje nossas diferenças serão resolvidas e colocaremos em pratos limpos toda a nossa história desde a morte do Juarez. Eu só não sei se você vai gostar do que tenho para dizer.

Jaque de Lire sorriu e disse na mesma hora: Eu mal posso esperar para ouvi-lo, mas primeiro farei algo sonhado há muito tempo. Ponham-no na máquina agora, berrou.

Seus vassalos me puseram naquela merda com uma rapidez que me surpreendeu. A máquina era simples como um instrumento de tortura mais antigo. Eu fui colocado em pé num encosto de madeira, de forma que minhas pernas ficaram abertas e meus braços também. Porém, as primeiras em posição de X e os braços abertos, perpendiculares ao corpo. O equipamento possuía furos de vários tamanhos em todas as suas partes e nas pontas braçadeiras metálicas para me imobilizar. Existiam também cintos de metal para evitar que meu abdome fosse para frente. Ou seja, no fim eu estaria completamente imóvel, e eu fiquei mesmo.

Os braços e pernas eram articulados, movimentados por manivelas individuais, e podiam ser dobrados para baixo ou para os dois lados,. Um mecanismo bem simples, mas eficiente. Era só começar a girar a manivela que os membros eram movimentados juntos no sentido contrário às articulações. Por fim, ela era presa no chão de forma a não escorregar nem tombar o corpo, o apoio das costas também poderia ser levantado e abaixado. Com isso eu poderia ser inquirido deitado ou em pé.

O toque dos grilhões de ferro em minha pele foi estranho, mas eu me controlei, olhei para o Jaque e não demonstrei nenhum sentimento, apenas um olhar seco. No fundo até me imaginei na posição dele e curti a sensação.

Seu pecador desgraçado, ele me disse, hoje você me paga, pois nunca esqueci o brilho dos seus olhos no dia que tu mataste o Juarez. Eu percebi naquele momento que você estava guiado pelo demônio ou na pior das hipóteses, você era o próprio em pessoa. Isto nunca me saiu da cabeça e eu fiz de tudo pra esquecer aquele dia. Entrei para a polícia, rezei, me isolei e até tentei me suicidar de tanto desespero, mas um dia, eu vi um crime tão horrendo nos arredores de Lisboa que minha visão de mundo mudou. Pois eu não acredito que ninguém em sã consciência poderia realizar algo tão torpe, tão demoníaco se não fosse guiado pelo próprio capeta ou um de seus seguidores infernais. Pena que nunca pegamos o responsável. Nessa época eu entrei para a Igreja com o intuito de caçar todas as bruxas e demônios deste mundo e adivinha só quem é a bola da vez? A anos eu te persigo sem encontrar nada, mas dessa vez tu vai me contar tudo e se arrepender de seus pecados demônio desgraçado, disse Jaque.

— Eu quase não me agüento de tanta vontade de contar tudo o que fiz, seu padreco de merda, e matar a minha família, inocente, só mandará você para o mesmo lugar que eu, o inferno! Lá nos encontraremos e eu terei o meu acerto de contas. Só para começar e te tranqüilizar, parte do motivo se sua entrada na igreja foi eu quem te deu! Você me deve essa, disse dando uma gargalhada. Todas aquelas mulheres, mortas em Lisboa, foram mortas por mim e com um toque especial para a sua adorável esposa!

Jaque perdeu a compostura, pois ele não havia dito uma palavra sequer a respeito de sua mulher ter sido uma das vítimas, e deu três voltas na manivela de meu braço esquerdo. Não foi o suficiente para quebrá-lo, já que o mecanismo movimentou o meu antebraço para baixo, enquanto a parte superior do braço ficou presa e voltada para cima. Nessa hora ouvi um estalo vindo do meu cotovelo e isso me deu um baita susto, principalmente quando vi o brilho em seus olhos. A dor só veio em seguida. Naquele momento eu percebi algo extraordinário: Eu havia transformado um padre da Igreja católica em um demônio como eu.

O ocorrido me confortou bastante, tanto que eu sorri quando ele me espetou com uma agulha comprida, através de um dos furos laterais existentes na estrutura de madeira da máquina. Sorri mesmo vendo que a agulha havia atravessado meu antebraço esquerdo e que o sangue quente havia começado a escorrer pelos meus dedos.

Eu tinha certeza que aquele seria o meu último dia na face da Terra, mas eu nunca daria o gostinho de vitória para o meu carrasco. Eu sentia uma sensação de prazer a cada comentário que me era dito e a cada pergunta feita, pois conseguia ver o ódio crescente em seus olhos. Nesta hora, a idéia de que não conseguir a minha confissão já deveria estar passando na cabeça do Padre Jaque.

— Peça perdão a Deus, pecador dos infernos, disse o inquisidor, confesse seus pecados que acabarei com seu tormento, pois sua dor é algo que deverá ser lembrada até o último suspiro, como penitência por seus pecados. Mas, se confessares eu juro que não irás para a fogueira. Assassino sujo e infeliz, peça perdão e redima-se de seus pecados em nome de Deus — gritou Jaque mais uma vez enquanto girava uma das manivelas e me deixava em pé.

— De nada adianta me torturar, eu jamais me curvarei a você seu pecador travestido em membro da igreja. Gritarei a todos os ventos todos os seus pecados e serás tu torturado nesta mesma mesa que me encontro, pois é igual a mim, um assassino descontrolado.

Os outros padres ficaram estarrecidos com as minhas palavras, mas nada fizeram, pois essas atitudes por parte dos torturados eram comuns até demais, soavam como um último fio de esperança. Esperança essa que nuca chegaria.

Após meu ataque verborrágico senti uma dor tão intensa que evacuei em minhas calças. Eu achava que a sessão ficaria pior, mas nada como aquilo. Talvez a fogueira fosse uma morte mais rápida e menos dolorosa. Quando consegui abrir meus olhos eu o vi com uma marreta de madeira, que deveria pesar uns três quilos, nas mãos, pingando sangue. O safado havia martelado os meus dedos do pé esquerdo.

— Arrependa-se disse ele!

Respirei um pouco me concentrei, cuspi no chão e ri. Foi somente isso que fiz antes da nova martelada. Nesta hora eu acho que a dor não mais me afetava, eu estava entorpecido de tanta adrenalina que corria em minhas veias. Até pensei estar delirando quando vi aquele outro padre encostado no fundo, olhando direto nos meus olhos. Um olhar frio e penetrante, daqueles que somente alguém como eu poderia reconhecer.

Em seguida, realmente achei que iria morrer, pois vi algo inimaginável. O padre sacou um bastão de madeira e veio em minha direção, só que no meio do caminho acertou Jaque e em seguida os dois discípulos que o acompanhavam. Quando finalmente veio em minha direção, não vi mais nada.

Quando acordei estava deitado em uma cama muito bem arrumada e confortável, forrada com lençóis brancos. O quarto era simples, como se fosse de um franciscano, e todo pintado de branco. Havia apenas um crucifixo pregado na parede e uma bíblia em cima da mesa de cabeceira, junto a um copo de água. Levantei e fui à janela ver onde estava. De lá era possível se ver os jardins do mosteiro e a horta também. Uma paisagem bem bucólica e tranqüila. Por um breve segundo pensei estar no Céu e mal acreditei quando a porta abriu. Fiquei esperando por anjos, nem sei o porquê, dada a minha vida de crimes e mortes. Mas como já era de se esperar o inferno veio até mim e apenas o padre e seu bastão estavam me encarando naquele momento.
Na seqüência, parece que saí do transe e caí na real. Meu corpo estava muito dolorido e meu pé enfaixado. Logo me lembrei de tudo que havia passado e foi nessa hora que um pensamento me veio a cabeça: iria começar tudo de novo.

Sentei na cama, tomei um gole de água e disse: vamos nessa que já estou pronto, ao mesmo tempo em que aquele ser me encarava, impassível e sem nem ao menos conseguiu sorrir de minha desgraça.

— Fique calmo e relaxe, meu garoto. Disse o padre. A partir de agora você esta em minhas mãos e começará uma nova vida, só que agora com um propósito. Descanse e durma que nossas enfermeiras irão cuidar muito bem de seus ferimentos. Conversaremos de novo mais tarde. Não havia mais o que fazer, pensei. Deitei na cama e dormi, esperando que um pouco de paz e sossego guiassem o meu sono.

O padre Jorge me acordou e logo em seguida me arrancou da cama com pontapés e murros em minhas costelas. Eu pensei que estava encrencado e tentei revidar. Apenas consegui levar mais pancada. Apanhei tanto que desisti de tentar me levantar. Foi nessa hora que mais dois me pegaram e jogaram por um buraco no chão em cômodo escuro e bolorento. Lá encontrei mais dois presos, no mesmo estado que eu.


A cela era fria, escura e muito suja, pois não havia banheiro. As paredes de pedra retinham umidade e a falta de sol e de iluminação apropriada fazia com que o mofo crescesse a olhos vistos. Fora isso existia ratos, baratas e morcegos, voando e cagando em nossas cabeças quando dormíamos. Pelo menos teríamos comida caso necessário. Fora alguns buracos nas paredes não havia porta no local, a única saída era por um buraco no teto, de onde fomos jogados e por onde saía o barril de excrementos. O problema era que antes dele se encher ninguém perderia tempo tentando retirá-lo dali.

A comida era jogada pela abertura uma única vez ao dia e normalmente era um pão duro ou um pouco ce comida feita com restos estragados das refeições dos nobres ou de quem quer que fosse.
Pensei comigo que aquilo seria a próxima fase da tortura, mas isso mudou quando um dos presos me ajudou a sentar e perguntou o que acontecera comigo para ter sido jogado ali junto deles.
Após me apresentar perguntei o que eles faziam ali. João Marques, o mais forte dos dois, um cara alto e magro, devido ao confinamento e as seções de tortura, me disse que havia sido preso por ter matado dezessete pessoas. Seu rosto estava marcado pela vida sofrida. Ele aparentava uns quarenta anos, mas não tinha mais que trinta e três. Carlos matara um pouco menos. Naquela época alguns atos eram tidos como coisa do Diabo e a pena era a fogueira.

Entendi então que éramos três malditos assassinos presos no fundo de uma masmorra, esperando ser esquecidos ou torturados pelos inquisidores, o que também resultaria em nossa morte, mas o futuro provaria que nem tudo seria o que estava parecendo e que algo novo poderia surgir.

Fiquei ali por três meses, parece que cultivando meu ódio e meu rancor. Eu sabia que uma hora ou nós nos mataríamos ou morreríamos, porque esquecidos já havíamos sido há muito tempo. Por mais incrível que pareça, ficamos os três ali vivos e esperando.

Um dia a escotilha se abriu e o Padre Jorge apareceu e disse: hoje se Deus quiser, e nós acharmos que vocês merecem, sairão daqui livres e vivos.Nessa hora, fiz um juramento pra mim mesmo que se eu saísse dali vivo, pegaria aquele padre desgraçado que me torturou, caso ele ainda estivesse vivo, e esse engraçadinho aí. Depois passaria uma semana com eles, me divertindo.

quinta-feira, 8 de janeiro de 2009

Conto: Tiragosto saboroso

Faz exatas nove horas que estou aqui, às vezes eu faço isso, ficar observando o dia se acabar e a noite surgir. O sol se pondo em Brasília é sem dúvida o mais bonito que já vi, o céu é inundado por raios avermelhados, como se estivesse em brasas e o próprio inferno se abrisse dando uma dica de que tempos piores estão por vir. Ele só perde para a Lua que nasce gigante, vermelha e tentadora como o sangue de uma adolescente, trazendo o esplendor de mais uma noite cheia de surpresas.

Ao longe, nas alturas, vejo pequenas asas negras sobrevoando o Congresso Nacional, voando em círculos, observando calmamente o movimento desordenado das pessoas e os carros parados no engarrafamento. Demônios alados, carniceiros vorazes, camuflados pela distância em urubus. Por horas, de cima do edifício do Banco Central, o ponto mais alto da cidade, observo o movimento e fico imaginando se o mundo realmente sairá dos eixos e se nós, os seres das trevas, um dia decidiremos atacar os humanos. Há séculos temos vivido um equilíbrio frágil, disfarçados na escuridão, mas presentes em todos os lugares.

As conversas que escutei nos últimos dias dizem que um grande grupo se prepara para quebrar o balanço. Infelizmente esta situação vai gerar o caos e uma possível guerra poderá ocorrer. A minha preocupação é que apesar de sermos muitos, os humanos são infinitamente mais numerosos, e diferente de séculos atrás, estão mais preparados e conscientes de seu poderio de ataque e defesa. Possuem mais armas que nós e em pouco tempo podem nos subjugar. Tenho que pensar o que farei, qual partido devo tomar? Esta talvez seja uma das minhas decisões mais difíceis desde que fugi da Europa e vim para o Brasil.

De minha posição, eu vejo com clareza o caos que se encontra a humanidade, banida de compaixão e repleta de violência e corrupção. Os humanos se mostraram, senão iguais, piores que nós. Talvez seja esta a hora de uma virada, uma limpada geral nesta sujeira. Talvez tenha chegado a hora de parar com a evolução desenfreada do conhecimento humano e com ele o risco de sermos descobertos. Talvez esta seja a janela da oportunidade para jogarmos o mundo no caos novamente e tomarmos o poder que nos foi usurpado.

Só sei que estas questões são complexas e devem ser estudadas mais profundamente. Temo apenas que não tenhamos tempo para isso. Tentarei marcar uma reunião com o conselho para amanhã à noite a fim de discutirmos o que fazer. Penso que talvez seja melhor continuarmos como estamos, vivendo na surdina dos acontecimentos e nos banqueteando da luxúria e cobiça desse povo medíocre. Para que jogarmos tudo fora? Já não basta praga que está nos consumindo como uma lepra, ainda nos arriscaremos a isso, perecermos sob fúria implacável da índole humana?

Se existe uma coisa que eu aprendi nestes últimos duzentos anos é que os humanos são mais perigosos do que pensamos e se estiverem em perigo, sua fé inabalável na ajuda divina os levará a limites extremos. Se bobearmos, no fim, nada conseguirá fazê-los desistir de sobreviver, e nada, nada mesmo os fará aceitar uma vida de escravidão e sofrimento. Eu sei que uma coisa está bem clara em suas mentes: Eles vieram para dominar o mundo e aqui ficarão, sob o comando e a anuência de seu Deus.

Perdido em meus pensamentos, enquanto apreciava a vista da cidade agora já iluminada pelas luzes dos edifícios, das lojas e pelo movimento frenético dos carros, vi ao longe, uma pequena jovem andando em meio aos prédios e ruas já desertas do Setor Bancário, sozinha e descuidada, provavelmente alguém que havia trabalhado até um pouco mais tarde e procurava seu carro estacionado em algum lugar. Uma vítima perfeita para àqueles que vivem da morte. Uma alma desguarnecida de cuidados e, com muita sorte, repleta de ternura e sentimentos puros. Um prato cheio para o grupo que a estava cercando.Eles se seguem pelas laterais dos prédios, grudados nas janelas, como feras a caça de sua presa. Um passo de cada vez, bem devagar acompanhando o caminhar despreocupado da menina. Em cada esquina, seus movimentos aceleravam, de forma que somente olhos treinados e potentes podem enxergar. Seus movimentos são tão rápidos que parecem sombras negras, esticadas pelo vento da noite. Este ataque, bem no início da noite, é um sinal claro de que não estão mais preocupados em serem notados. Eles irão se alimentar de seu corpo frágil, tomar seu sangue e comer sua carne tenra. Isso é um péssimo sinal e eu não posso permitir que ocorra.


A lua escarlate parece abençoar a carnificina que está por ocorrer. Fico de pé, no topo do prédio, e sinto minhas veias pulsar descontrolas, minha pele queimar e meus olhos se tornarem vermelhos com o sangue que circula acelerado por todo o meu corpo. É como se uma descarga de adrenalina gigante houvesse me invadido. Nessa hora, após uma respirada mais profunda, decido pular. Dou um passo para frente e salto, de pé, olhando os 35 andares de queda livre. Pouco antes de tocar o chão, encolho as pernas, giro, apoio os pés nas janelas e empurro para frente, giro de novo e então estouro o teto de uma Ford Ranger. Nesse momento começo uma corrida desenfreada para tentar alcançar a moça. Nem me dou ao trabalho de olhar para trás para ver se os seguranças do prédio me viram.

Eu podia sentir seu perfume a uma quadra de distância e ver sua aura emanando uma cor rosa clara, pureza. Ela era baixa e magra, com o corpo de uma menina de dezesseis anos. Seus cabelos negros e compridos balançavam durante enquanto andava e eram jogados bem devagar para trás pela brisa quente da noite. Tenho que alcançá-la a todo custo.Em meu a minha corrida pude vê-la chegar na porta de seu carro, um pequeno e velho Uno Mille.
Ela então pareceu ouvir algo em suas costas, como um suspiro bem leve, trazido pelo vento. Olhou para trás mais que rapidamente e assustada, com o coração disparado, não viu nada. Respirou aliviada e olhou de novo para a porta de seu carro e um estrondo enorme foi ouvido, uma pessoa havia caído no teto do carro e os vidros se estilhaçaram, jogando cacos por todos os lados. O alarme disparou na hora e ela caiu sentada e horrorizada com o susto. Nenhuma palavra saiu de sua boca, pois quase desmaiou. Antes que pudesse colocar seus pensamentos em ordem, percebeu que algo estranho estava ocorrendo. O corpo em cima de seu carro começou a se levantar e sombras negras passavam em volta de seu corpo.
O corpo se levantou bem devagar, ficando primeiramente de joelhos e depois em pé com a cabeça abaixada. Usava roupas largas como uma batina de padre, rasgadas e de cor negra com costuras marrons nas laterais. Parecia um mendigo. Sua cabeça ainda estava coberta pelo capuz, mas dava para ver alguns fios do cabelo comprido e ensebado por baixo. O cheiro da praga penetrou minhas narinas e pude então ouvi-lo falar
— Silêncio menina e observe o que se passa ao seu redor.
Quando o capuz foi jogado para trás ela, estática, começou a gritar, a todos pulmões. A imagem do rosto daquele ser, de pé em cima do carro, era a própria face do inferno, seus dois olhos estavam costurados com barbantes e por todo rosto haviam pústulas infeccionadas e purulentas. O sangue escorria de alguns pontos. Em seguida ele desceu do carro como um raio e aproximou seu rosto bem perto do dela, seus lábios quase se encostaram. O hálito fétido era insuportável e suas palavras dolorosas.
— Não resista! Hoje você será nossa.

Em seguida ela viu os outros monges em sua volta, parados e sorrindo. Mais uma vez gritou, só que desta vez teve seu suplicio sufocado por um beijo apodrecido dado pelos lábios leprosos de seu algoz. Seus olhos permaneceram abertos como se chocados com o horror que se passava e então quando achou que iria desmaiar foi banhada por um jato mal cheiroso de sangue, que lhe molhou o rosto. Percebeu que um daqueles monstros havia sido cortado ao meio e suas entranhas estavam espalhadas pelo chão e seu sangue havia espirrado em jatos por todos os lados. Os outros dois procuravam ao redor o que havia ocorrido e assustados desapareceram em meio a uma nuvem de fumaça preta. Somente aquele que a segurava ficou parado, observando e tentando entender o que havia acontecido.

Ela então me viu, em cima de outro carro, segurando uma faca em cada uma de suas mãos e olhando fixamente para aquele monstro desfigurado. No outro segundo, como num piscar de olhos, viu o monge com as duas facas enfiadas em sua cabeça e um filete de sangue saindo de seus olhos costurados. Ela respirou profundamente e começou a chorar, agradecendo e colocando a sua cabeça em meus ombros.

— Por que choras menina?
— Porque você, meu anjo, vindo dos céus, me salvou e me deste a vida de novo.
— Pobre menina — falei olhando bem dentro de seus olhos — enganada você está.

Em seguida passei a faca em seu pescoço e a deitei bem devagar em meu colo, enquanto sugava o seu sangue, doce, jovem e muito saboroso pensei na reunião de guerra que teria com o conselho de vampiros. Ela então arregalou os olhos e tentou falar algo, mas suas palavras não mais saíram.

Mini conto: VIETNAN



Os flashes clareavam a escuridão e cegavam os olhos de todos que ali estavam. Os gritos de dor e os pedidos de socorro ecoavam dispersos pelo interior da densa floresta. Em meio ao breu daquela noite sem lua, as sombras se moviam rapidamente e desapareciam com os estampidos dos rifles. Lá estava eu cercado pelo terror de uma morte iminente e pelas conversas indecifráveis dos Vietcongs ao meu redor. De repente, enquanto agachado atrás de uma trincheira e banhado pelo sangue de meus amigos ouvi uma voz rouca soar em meus ouvidos.
Olhei assustado para aquele soldado que acabara de aproximar e se agachar ao meu lado, ríspido e centrado, disperso de todo aquele horror, focando apenas em minha pessoa e olhando diretamente nos meus olhos.
— Pronto para vir comigo soldado! — perguntou ele.
— Para onde vamos senhor?
— Para longe daqui.
— Mas quem diabos é você?
— A morte!
— Eu já imaginava.

Mini conto: DESPERTAR

Estou aqui, estático, de olhos fechados, imerso em pensamentos e lembranças. Eu me lembro do exato segundo em que tudo começou, do som dos tiros sendo disparados e dos gritos de dor de minha esposa moribunda, jogada no chão.
Lembro de minha filha mais nova, ajoelhada, estuprada, ferida, chorando, chamando por mim. Do cheiro de gasolina espalhado pelas cortinas de seu quarto e do ruído arrastado do fósforo sendo queimado. Lembro das risadas ecoando nos corredores.
Só nunca me esquecerei do momento que fui levado dali, para sacar o meu pouco dinheiro e tentar salvar a minha última filha, que foi levada não sei para onde.
O sentimento de impotência e da humilhação por não ter protegido minha família me consumiu. Abro meus olhos, agora bem devagar, o mundo a minha frente se torna diferente, vermelho, monstruoso,...,doce. Os pedidos de socorro não mais me incomodam, as lembranças insuflaram o desejo de morte em meu peito. O brilho de minha navalha me lembrou do poder que agora possuo. Os pulsos cortados, um a um, não tiveram a capacidade de matar. O corte na perna, comprido, profundo também não. O cheiro de sangue mexeu com meus sentidos, quase desisti de continuar. Um corte no pescoço, de orelha a orelha, foi o suficiente. A morte se apoderou de mim e eu gostei.
Gostei muito, amei! O monstro despertou! Matarei a todos, não adianta suplicar, a morte de minha família será vingada, aqui, agora, bem devagar, um de cada vez, ela virá para todos que estão aqui, presos nesta sala.

CONTO: PSICÓTICO.....



— Pois é meu amigo descamisado, eu ainda fico irritado todas as vezes que penso no assunto. Hoje faz cinco meses que estou preso nesta merda de hospital, neste manicômio. — A minha irritação cresce a cada segundo que fico olhando estas paredes brancas, nesta sala desprovida de tudo. O som dos internos conversando em suas próprias línguas incomoda meus ouvidos e o fedor de urina enjoa meu estômago, mas como não tenho nada para fazer mesmo, fico conversando sozinho ou com qualquer um que esteja na minha frente. Mesmo que ele não compreenda o que estou dizendo.

— Talvez se você parasse de brincar com essa colher e limpasse essa baba nojenta aí da sua boca a nossa conversa pudesse fluir um pouco melhor. Não é mesmo? Meu Deus o que estou fazendo, achando que esse aí poderia entender alguma coisa. Ninguém aqui pode, vocês são todos loucos, doentes. Só eu sou são.

— Eu entendo o que você diz — respondeu ele, para a minha surpresa, voltando em seguida a mexer na colher. — Me conte a sua história, por favor. Quem sabe não possa ajudá-lo.

Meus pensamentos então se voltaram à época anterior a minha internação e eu me lembrei o que passou. Nesta hora me veio a tristeza, a saudade e o medo de realmente estar louco. Tudo estava vivo dentro de mim e uma lágrima escorregou nos meus olhos quando me lembrei do meu filho. Era agosto de 2008.

— Bom, eu vou te contar exatamente o ocorrido, como se você estivesse vendo tudo por meus próprios olhos. Talvez assim você acredite em mim. Eu estava voltando para casa depois de um dia infernal de trabalho e pensando: Meu Deus, eu não agüento mais essa vida. Desde que minha mulher faleceu e eu assumi, sozinho, a criação do meu filho de dois anos, a minha vida ficou uma loucura. O trabalho em excesso está me deixando maluco. Tem dias que não agüento nem me mexer de tão cansado. Ando irritado e perdido. Hoje é um desses dias, exagerados, cansativos, enlouquecedores. Penso que estou adquirindo a síndrome do pânico porque quando estou sozinho sinto medo e o ar me falta, parece que o mundo vai fechar sobre mim. Tenho a impressão constante que estou sendo vigiado e que algo ruim poderá me acontecer. Este medo já me acompanha a algum tempo, mas sempre piora quando chego em casa. Não sei porque.

Mais uma vez cheguei em casa e a bábá foi embora no momento exato que pus os pés na sala. Nunca me sobra tempo nem para lavar o rosto. Enquanto esquentava a mamadeira, que estava pronta em cima do fogão, percebi que meu filho estava entretido no canto da cozinha com algumas moscas que voavam e pousavam em sua mão. Ele então olhou para mim e sorriu. Sorri de volta e fiquei estático por um segundo, vendo o que se passava. Por seus lábios entreabertos, saiu uma mosca, que subiu voou e pousou próximo a seu olho. Gritei com ele e corri em seu socorro. Mais algumas moscas saíram de sua boca, quando ele finalmente se mexeu e começou a chorar. Eu nem havia percebido que ele estava imóvel. Seus olhos vidrados voltaram ao normal e as lágrimas desceram rapidamente. Corri e o peguei nos braços. Levei-o então para nosso quarto e dei a mamadeira.

Eu me sentia estranho como se algo não estivesse certo. Arrumei o quarto e fui abrir a janela, pois estava muito calor. Vários insetos estavam pousados no vidro, pelo lado de fora. Achei aquilo esquisito, mas deixei para lá e o coloquei para dormir.

O meu menino já adormeceu, pensei, finalmente acho que vou conseguir dormir. Seu berço, daqueles desmontáveis azuis, fica bem em frente a minha cama e se eu levantar a cabeça consigo vê-lo por entre meus pés. É o suficiente para me tranqüilizar, saber que ele está seguro e próximo a mim. As cortinas grossas e as persianas metálicas fazem com que a escuridão preencha todos os espaços. Minha cama, larga e confortável fica encostada na parede e do outro lado está uma mesinha com minha água. Os armários encostados na parede, sempre com as portas fechadas e alguns quadros completam a decoração.

Nem acredito que me deitei e apaguei as luzes, só que ainda assim não me sinto bem, não estou conseguindo relaxar, minha garganta parece que está seca. Será o pânico de novo? Esse escuro, essa sensação de que estou mergulhado no breu, a impotência, o vazio, estão me fazendo suar. Tenho que me controlar. Meu coração está disparado.

Me sento na cama, mas a escuridão ainda me domina, não vejo nada, parece que estou flutuando no espaço, no limbo, no purgatório. Será que morri? Nem sei se estou de cabeça para baixo ou não, perdi a sensação de espaço. Maldita hora que fechei a porta do quarto. Se eu acender a luz vou acordar o meu filho e estou cansado demais para niná-lo de novo. Tenho que me controlar. Quem sabe se eu rezar um Padre Nosso me acalme e pegue no sono.

Me deito de novo. O meu travesseiro é confortável e ficar no canto da cama me facilita respirar. (...)Padre nosso que estais no céu(...). Acho que vou adormecer, mas essa sensação estranha que estou sentindo desde cedo não me deixa. Tenho certeza que além de mim e do neném não há mais ninguém aqui. Meu coração ainda está disparado. Acho que se continuar rezando consigo pegar no sono. Olho em volta e não vejo nada, escuto apenas o respirar agitado de meu filho. Parece que ele também está agitado. Pisco os olhos, (...)santificado seja o vosso nome(...).

Coisas estranhas passam pela minha cabeça, acordo assustado e suando, minha camisa encharcada. Será que adormeci ou apenas viajei em meus pensamentos? Fecho os olhos novamente e sinto ao meu lado uma brisa, gostosa, refrescante, quase imperceptível, refrescando minha nuca. Meu coração dispara, não consigo me mexer, estou paralisado, sentindo a brisa ir e voltar. Que diabos é isso, como pode estar ventando se o quarto está todo fechado? E agora o que faço? Me viro com força e tento ver o que está do meu lado, mas a escuridão era total e a brisa parou. Respiro profundamente e tento me acalmar. Que pesadelo foi esse pensei. Fecho os olhos e relaxo acho que vou tentar dormir de novo. Então dedos tocam levemente em minha face. Eu grito, grito e grito novamente. Alguém estava ali e me tocou, pulo para fora da cama e caio no chão. Fico esperando pelo pior e nada acontece de novo.

Desta vez eu senti, tenho certeza. Corro e acendo a luz. Não há nada no quarto. O que está acontecendo comigo? E como o neném não acordou se eu gritei? Olho então para meu filho e ele está ali dormindo, calmamente, sereno. Abro a porta do quarto e acendo a luz do corredor. Nunca mais dormirei neste breu, decidi. Volto para a cama e tento relaxar novamente. Esses pesadelos têm que passar.

Desta vez ficarei olhando para a porta, de onde vejo um pequeno filete de luz. O suficiente apenas para me permitir enxergar algo. Mas de novo eu me sinto estranho. A temperatura do quarto parece mais fria que antes. Um vulto passa em frente à porta, apenas uma sombra, mas eu a vi. Levanto assustado outra vez e sento na cama. Meu coração parece que vai sair pela poça, mal consigo respirar de tão nervoso. Acho que vou morrer. Esta deve ser a sensação. Ouço meu filho se revirar no berço e começar a falar baixinho, algo que não entendo, o frio aumenta e não consigo mais me segurar. Acendo a luz novamente.

Mais uma vez não há ninguém no quarto. Apenas o garoto em pé no berço, me observando, parado, inerte, seu rosto sem expressão e a chupeta na boca. Aperto os olhos pois a mudança de luz me deixou atordoado, ele está estranho, os olhos e a pele amarelados, não parece mais com o meu filho querido. Aquela visão e a sensação de gastura me impede de mexer, fico ali parado, observando, paralisado, com medo.

Ele me olha, abre a boca, seus dentes de leite estão escurecidos e a língua e meio azulada. Um cheiro horrível toma conta do quarto. Filho é o papai, falei. Ele então levanta a mão e aponta para a parede atrás de mim. Olho para trás e a sombra está lá se mexendo como se fosse me engolir. Olho de novo para frente e ele já está em cima de minha cama, agachado, me olhando. Antes que eu pudesse fazer algo ele pulou em cima de mim e cravou seus dedinhos em minhas costelas, dos dois lados. O agarro e grito, grito com todo o ar de meus pulmões. Foi então que a escuridão me pegou. Acordei aqui, já não estava mais em meu quarto. O que teria me acontecido, pensei assustado.

— Fique calmo, você teve um surto psicótico e está internado. Disse o médico que estava ao meu lado.

— Onde está o meu filho?

— Sinto muito,mas ele está desaparecido. Apenas o seu sangue foi encontrado no quarto em sua casa. A policia acredita que você o matou e escondeu o corpo. Eles virão interrogá-lo mais tarde.

— Não! — Gritei, chorei, me desesperei e só então percebi que estava amarrado em uma maca. Desde então estou preso, acusado de louco e de matar meu filho, mas tenho certeza de que tem uma explicação para tudo isso. Sou inocente e definitivamente não sou louco.

— Como você pode estar tão certo disso?

— Por isso. — levantei a camisa e mostrei a marcas dos dez dedinhos cravadas em meu tórax.

— Desencana, você nunca sairá daqui.

— Porque diz isso com tanta certeza?

— Experiência própria. — Ele então ele se levantou e foi brincar com a colher em outra mesa. Quando virou de costas pude ver as cicatrizes de dez dedinhos fincados bem abaixo de suas costelas.


THE END ....FOR NOW